O que são opioides? Entenda se a crise que mata mais de 200 pessoas por dia nos EUA pode chegar ao Brasil
Minha mãe, Angelina*, era enfermeira e tinha fácil acesso a opioides no hospital [em que trabalhava]. Quando ela teve conjuntivite bacteriana, sentiu muita dor e começou a aplicar morfina em si mesma. Isso desencadeou o vício. Ela procurava coisas cada vez mais fortes, como fentanil [50 vezes mais viciante que a heroína]. Depois de se tratar, teve uma recaída aqui em casa e faleceu de overdose aos 42 anos. Eu que a encontrei. Foi terrível.”
Aos 25 anos, Maria*, de Brasília, aceitou contar a história de sua mãe [veja os detalhes ao longo desta reportagem] com um objetivo: conscientizar as pessoas a respeito do perigo de usar opioides sem prescrição médica.
Esses remédios — como morfina, codeína e oxicodona — são analgésicos que oferecem, de fato, um alto risco de dependência, caso sejam utilizados de forma recreativa ou sem o controle adequado de um especialista.
Mas, com a orientação correta, são recursos importantíssimos para o bem-estar de pacientes que enfrentam fortes dores, como os que têm câncer, estão em fase terminal ou recuperam-se de cirurgias.
➡️ Como, então, garantir que os opioides sejam usados apenas de forma responsável? É possível evitar que o Brasil viva a mesma crise dos Estados Unidos, onde cerca de 200 pessoas morrem por dia pelo consumo abusivo desses remédios?
Descubra mais abaixo e tire as seguintes dúvidas:
- O que explica o aumento na venda de opioides no Brasil?
- O que são opioides?
- Em que casos eles provocam dependência e vício?
- Existe uma “porta de entrada” para o vício?
- O caso de Angelina: ‘Ela dormia por horas e tinha espasmos musculares. Parecia um zumbi’
- Quais os efeitos colaterais?
- Quais as consequências do uso indevido de opioides?
- O que causou a crise nos Estados Unidos?
- Quais as diferenças em relação ao Brasil?
📈 Contexto: o que explica o aumento na venda de opioides no Brasil?
Segundo dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a venda de opioides no Brasil cresceu 500% de 2009 a 2015, puxada pela codeína e pela oxicodona — saltou de 1.601.043 prescrições para 9.045.945 nesse período.
“Definitivamente, houve um aumento no consumo de opioides no Brasil, mas não é possível dizer o que está impulsionando esse crescimento”, afirma ao g1 Noa Krawczyc, pesquisadora da Universidade de Nova York e membro do Centro de Epidemiologia e Política de Opioides dos Estados Unidos.
Não sabemos ainda se é algo ruim — se são pessoas que estavam realmente precisando receber os remédios ou se há um consumo inadequado deles.”
💊 Possibilidade 1: Historicamente, o Brasil apresenta problemas no “manejo da dor” — por conservadorismo ou medo, especialistas deixavam de receitar opioides para quem realmente precisava.
“Cerca de 80% dos pacientes com câncer vão apresentar dor no curso da doença ou do tratamento, mas é uma condição subtratada aqui no país”, afirma Christiane Pellegrino, uma das responsáveis pelo Núcleo de Dor Aguda do Hospital Sírio Libanês (SP).
Essa elevação nas vendas pode estar relacionada a uma conscientização dos profissionais de saúde em diminuir o sofrimento de pacientes. É o que explica João Batista Garcia, diretor científico da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP).
“As pessoas hoje têm mais acesso a cuidados paliativos. Precisamos lutar pela disponibilidade de opioides para quem precisa, ensinando a melhor forma de prescrever os medicamentos”, diz. “Mas também temos de combater a prescrição indiscriminada de opioides.”
💊 Possibilidade 2: O que os números não detectam é a venda ilegal dos medicamentos, principalmente do fentanil, o principal problema na crise americana. Em doses erradas (ou misturado à heroína), ele causa depressão respiratória e leva o usuário à morte.
Não se sabe qual a dimensão do problema aqui no Brasil — o primeiro grande alerta veio neste ano, quando, em três meses, a polícia fez três apreensões do medicamento no Espírito Santo, em locais ligados ao tráfico de drogas.
“Os pesquisadores estão focados nas possíveis misturas de fentanil com cocaína e drogas K no Brasil, que podem ser ainda mais viciantes e letais”, explica Krawczyc.
O g1 solicitou à Anvisa dados mais atualizados sobre o consumo de opioides no Brasil:
- A agência afirma que, como a metadona e oxicodona são comercializadas por até três empresas, “não pode fornecer a informação [de vendas] para terceiros”, para “não colocar em risco informações sigilosas” desses laboratórios. É uma determinação de 2016.
- No caso da morfina e do tramadol, os números permaneceram estáveis entre 2021, 2022 e o primeiro semestre de 2023.
- Quanto aos medicamentos com fentanila, que estão entre os mais potentes, houve um pico em 2021: foram mais de 4,3 milhões de unidades vendidas, provavelmente por causa do alto número de internações de pacientes com Covid (a substância é usada na ventilação mecânica). Em 2022, com o fim da pandemia, o índice caiu para 748.571.
🔴 O que são opioides?
Comprimidos de oxicodona em Nova York (EUA) — Foto: Mark Lennihan/AP
O ópio, uma droga proveniente da flor da papoula, chegou a ser motivo de guerra entre países da Europa e da Ásia no século XIX, justamente por gerar dependência química e consequente lucro para o tráfico.
Existem os seguintes tipos, que podem ser ingeridos por comprimidos (via oral) ou por injeções:
- os opiáceos naturais, que não sofrem modificações, como a morfina e a codeína;
- os semi-sintéticos, que passam por modificações parciais na composição (heroína);
- e os totalmente sintéticos, fabricados em laboratório para terem ação semelhante ao ópio (metadona).
As propriedades analgésicas desses medicamentos poupam pacientes na UTI, por exemplo, de sentirem fortes dores. “Quando a gente utiliza da maneira correta, são medicações seguras”, afirma Pellegrino, do Sírio Libanês.
Já a pessoa que ingere opioides de forma recreativa ou sem orientação médica, buscando a sensação de bem-estar trazida pela droga, corre um risco alto de desenvolver dependência (leia mais abaixo).
🔴 Em que casos eles provocam dependência e vício?
Os opioides são uma das principais causas de morte entre jovens adultos americanos — Foto: GETTY IMAGES
A orientação médica é essencial para evitar que o paciente se vicie no remédio. Só o especialista poderá dizer a dose correta e o período de administração do medicamento.
Nos hospitais, o ideal é que o profissional, antes de prescrever um opioide, avalie se aquele indivíduo tem um perfil de risco, como um histórico de abuso de substâncias ilícitas ou de álcool.
Tomar os remédios por períodos prolongados também aumenta o perigo. Por isso, na estratégia médica mais “moderna”, usa-se a analgesia multimodal, explica Pellegrino.
“Administramos não só o opioide, mas também a dipirona e o paracetamol, por exemplo. Quando fazemos essas combinações, conseguimos usar o opioide em menores doses”, diz a médica do Sírio-Libanês.
🔴 Existe uma ‘porta de entrada’ para o vício?
Muitos dos pacientes que migraram para o uso ilícito do medicamento e tornaram-se dependentes dele começaram a tomá-lo com prescrição médica, mas da forma errada.
Por exemplo: a pessoa tem comprimidos para tomar por 20 dias (um por dia). Ela sente mais dor do que esperava e passa a ingerir 2 doses diárias, sem consultar o especialista. Resultado: 10 dias depois, a cartela de opioides já vai ter acabado.
O organismo sentirá falta da substância, e o paciente passará a procurar uma nova receita de maneira “ilícita”.
Fará o chamado “doctor shopping” (ir a diversos especialistas e mentir que foi assaltado, por exemplo, para conseguir uma nova prescrição) ou irá ao pronto-socorro, dizendo que está com dores fortes e que precisa da medicação injetável. Quanto mais usar o remédio, maior será a dose “pedida” pelo organismo.
⚠️Atenção: até para interromper o tratamento, é necessário ser orientado pelo médico. “Parar de tomar o medicamento antes, dependendo da dose, pode causar abstinência. É preciso fazer o ‘desmame’”, explica Garcia, da ANCP. “Tirar de uma vez [o opioide] causa calafrio, insônia e irritabilidade.”
Outro quadro é o do vício: nesse caso, não são as sensações físicas de abstinência que levam a pessoa a tomar o remédio, e sim o desejo incontrolável de ter o “barato” e a euforia. “O paciente faz qualquer coisa para ter aquela sensação prazerosa, como no uso da cocaína ou do álcool”, afirma o especialista.
➡️ O caso de Angelina: ‘Ela dormia por horas e tinha espasmos musculares. Parecia um zumbi’
A enfermeira Angelina, citada no início da reportagem, morreu aos 42 anos, cerca de 2 anos depois de começar a usar opioides. Ela não era dependente de nenhuma outra substância (nem mesmo das lícitas, como álcool e nicotina).
O problema começou quando Angelina buscou ampolas de morfina no hospital onde trabalhava, em Brasília, sem prescrição médica, para aplacar a dor fortíssima causada por uma conjuntivite bacteriana.
Ali começou o descontrole: ela precisava de remédios cada vez mais fortes. Passou a usar diferentes analgésicos, até chegar ao fentanil.
“Ela ‘apagava’, dormia por horas durante o dia. Na abstinência, tinha uns espasmos musculares e parecia um zumbi: estava ali só fisicamente”, conta a filha, Maria. “Lembro que, na véspera do meu aniversário, ela começou a balbuciar coisas. Levamos minha mãe para a emergência, e demorou para ela ser sedada, porque tinha desenvolvido resistência aos medicamentos.”
De maio a outubro de 2018, Angelina ficou internada para tentar se livrar da dependência. Depois, ainda afastada do trabalho, passou a frequentar o grupo de Narcóticos Anônimos.
Ao longo do processo de recuperação, a família ficava atenta a marcas de agulhadas no braço de Angelina ou vestígios de droga na bolsa e na roupa dela.
Tudo corria bem, até a enfermeira voltar ao emprego em janeiro de 2019, no setor administrativo de um hospital para pacientes terminais. “Deu tudo certo no primeiro dia, mas aí ela descobriu onde ficava guardada a medicação. Teve uma recaída aqui em casa e faleceu de overdose no dia 16”, conta a filha.
🔴 Quais os efeitos colaterais?
Para os pacientes que realmente precisam de opioides por tempo prolongado, como os que têm câncer, os efeitos colaterais costumam desaparecer com o passar do tempo (coceira e náusea, por exemplo). O que persiste, em geral, é a obstipação (dificuldade para evacuar) — nesses casos, é usado laxante para contrabalancear o efeito.
🔴 Quais as consequências do uso indevido de opioides?
Sem a orientação correta, os medicamentos podem causar:
- contração acentuada das pupilas dos olhos;
- paralisia do estômago;
- forte prisão de ventre;
- overdose (mais comum em: doses injetáveis, altas quantidades, combinação com álcool e anestésicos, e condições médicas como doenças mentais, hepáticas ou pulmonares);
- depressão respiratória;
- eventos cardiovasculares;
- morte.
É importante lembrar que o organismo passa a pedir cada vez doses maiores de opioides para obter os mesmos efeitos de “bem-estar” momentâneo.
“Se a pessoa ‘errar a mão’ ou misturar doses, pode ter depressão respiratória e morrer. Nos EUA, isso acontece frequentemente com o fentanil”, afirma João Batista Garcia. A mistura com heroína ainda barateia a substância e a deixa mais potente.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), “há evidências de que os traficantes de drogas possam estar adicionando fentanil para aumentar a potência de seus produtos (como a heroína) e vendendo como comprimidos falsificados, criados para parecerem medicamentos prescritos autênticos”.
Nesses casos, o comprador ingere a substância sem nem saber que é fentanil.
🔴 O que causou a crise nos Estados Unidos?
Segundo os pesquisadores Francisco Inácio Bastos (Fiocruz) e Noa Krawczyk (Universidade de Nova York), em artigo científico publicado na revista científica “The Lancet”, a crise dos opiáceos começou nos EUA pelos seguintes motivos:
- o marketing pesado da indústria farmacêutica, que vendia a falsa informação de que não há risco de dependência;
- a prescrição excessiva desses medicamentos;
- o desvio de opioides de “fontes médicas”, como hospitais;
- o crescimento dos mercados ilícitos de heroína e fentanil, impulsionados pelas altas taxas de dependência e demanda da população americana.
🔴 Quais as diferenças em relação ao Brasil?
Segundo o estudo do “The Lancet”:
- 💰 O poder de compra dos brasileiros é insignificante em comparação ao dos americanos, inclusive no mercado de drogas. A cocaína acaba sendo uma opção mais barata do que os opioides.
- 🌎 O Brasil não está (ao menos por enquanto) nas rotas de tráfico de opioides vindas do México, da América Central e de outros países da América do Sul. Nossa posição é historicamente importante para o mercado de cocaína.
- 👩 Os perfis são diferentes: em 2015, as pesquisas mostraram que, aqui no Brasil, as mulheres eram mais propensas a usar opioides de forma não médica do que os homens. O oposto acontece nos Estados Unidos.
“Sempre há riscos de que as coisas piorem em termos de prescrição excessiva de opioides, por isso, o controle médico e a vigilância são importantes para prevenir o uso indevido e generalizado”, afirma Krawczyc, da Universidade de Nova York.
“Também é preciso ter infraestrutura para tratar os dependentes desses medicamentos, como a disponibilidade de naloxona nos hospitais [droga usada na emergência para casos de superdose ou intoxicação por opioides].”
A Anvisa afirma que o fentanil está na lista do Ministério da Saúde de substâncias entorpecentes e precisa ser sempre guardada sob chave, em local exclusivo, com todas as atividades de movimentação registradas. E é a própria agência que autoriza importações e estabelece previamente as quantidades permitidas.
➡️ Outros cuidados necessários, segundo os especialistas ouvidos pelo g1, são:
- investir em vigilância;
- monitorar os dados de uso de drogas no país;
- fazer análises toxicológicas nas apreensões de drogas, para detectar fentanil.
“Nós temos muitos problemas na sociedade que podem aumentar o risco de uso de drogas: como pobreza, desigualdade, dores crônicas e falta de saúde mental. Aqui caso dos EUA, ainda há uma indústria farmacêutica que se beneficia dessa demanda de opioides”, diz Krawczyc. “Os americanos e os brasileiros estão falhando [na política de combate às drogas] ao priorizar as punições, e não os investimentos em saúde pública.”
G1