A tendência de unanimidade nas decisões da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), com suspeitas de alinhamento de interesses entre os membros da diretoria colegiada, despertou preocupação de parlamentares no Congresso Nacional. A agência é reconhecida pela atuação técnica na análise e aprovação e fiscalização de uma variedade de produtos e estabelecimentos, isso abrange desde agrotóxicos, alimentos, cosméticos e medicamentos até serviços de saúde, tabaco e outros itens.
No entanto, servidores que falaram com exclusividade com o R7, sob a condição de manterem o anonimato, relataram à reportagem que apenas os assuntos com consenso são incluídos na pauta de votações da Diretoria Colegiada, composta pelo presidente da agência, Antonio Barra Torres, e outros quatro diretores. Na última ata de 2023, por exemplo, que registra a reunião de 6 a 8 de dezembro, 62 temas foram decididos por unanimidade, e 1 por maioria de votos.
Para a senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), as suspeitas levantadas por servidores da agência distorcem o princípio da colegialidade. “Nós temos órgãos colegiados justamente para que haja a possibilidade de ter outras opiniões. Se só vai para a pauta o combinado, qual é o sentido de existir um órgão colegiado?”, afirmou. “Esta situação da Anvisa é mais um exemplo daquilo que temos o dever de combater. Uma CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] talvez esclareça esses desmandos.”
O senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) também defendeu que suspeitas e denúncias sejam investigadas, mas afirmou que é precipitado falar em CPI. “Eu vejo que tem que ser investigado o mais urgente possível, mas acho muito precipitado falar em CPI ou qualquer outra coisa nesse momento. Por hora, a coisa mais certa a fazer é deixar isso na mão do Ministério Público e que eles investiguem.
A investigação também foi defendida pelo senador Paulo Paim (PT-RS). “Há um clima de preocupação com tudo o que está acontecendo [nas agências]. O que eu tenho a dizer é que seja o que for, tudo tem que ser investigado. Se existe denúncia por parte de servidores, que se investigue e que se tire a limpo essa situação. Porque são situações que colocam a democracia em risco”, disse ao R7.
Nos bastidores, funcionários da Anvisa também relatam que Barra Torres atuou ainda para influenciar outros diretores na liberação do agrotóxico Paraquat. O produto foi retirado do mercado por estar ligado à doença de Parkinson e a problemas de órgãos como pulmões, rins e fígado. Inicialmente, a Anvisa havia decidido proibir o Paraquat em 2017, após quase dez anos de discussão sobre o tema.
Naquele momento, foi definido que o setor teria até 2020 para se adaptar. Depois, a data foi prorrogada por mais um ano para permitir que os produtores usassem seus estoques. No entanto, o lobby do agronegócio pressionava por outra extensão no uso do produto por mais um ano.
A votação ocorreu em 15 de setembro de 2020. Marcus Aurélio Miranda de Araújo, que era o diretor-substituto da Anvisa e chegou a chefiar o gabinete de Barra Torres, votou de acordo com a recomendação técnica da agência, que era a favor de proibir o produto.
Com isso, o resultado final foi de 3 votos a favor da proibição e 2 votos a favor da permissão, contando com os votos dos diretores Romison Rodrigues Mota e Alessandra Bastos Soares. Barra Torres e Meiruze Freitas votaram a favor de permitir o uso da substância. Antes da votação, Meiruze havia se mostrado contra o agrotóxico, mas acabou mudando seu voto.
Barra Torres perdeu a votação, e menos de dez dias depois, em 24 de setembro de 2020, Jair Bolsonaro retirou a indicação de Marcus Aurélio para ser diretor efetivo da Anvisa. Marcus já atuava como diretor-substituto, mas ainda aguardava a aprovação do Senado para assumir o cargo de diretor efetivo.
Além disso, a Anvisa também entrou na mira do MPTCU (Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União) devido a casos de assédio denunciados por servidores e diante da suposta inação da presidência da agência na resolução dos casos de assédio. A representação, a que o R7 teve acesso com exclusividade, foi assinada nesta sexta-feira (9) pelo subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado.
Na representação, o subprocurador menciona que as denúncias “levantam dúvidas acerca da maneira como a atual direção da agência lida com a gestão de pessoas nas coordenações da Anvisa” e que “a prática de assédio na administração pública configura flagrante violação ao princípio da moralidade, previsto expressamente no capítulo do artigo 37 da Constituição”.
Ao R7, oito servidores e ex-servidores da agência relataram o clima de medo e intimidação. Eles só aceitaram conversar com a reportagem com a condição de terem as identidades preservadas, por medo de retaliação.
Ao todo, em 2023 foram relatados oficialmente à CGU sete casos de assédio moral e um caso de assédio sexual na Anvisa. Esse número é mais que o dobro do registrado em 2022, quando foram reportados três casos de assédio moral e nenhum caso de assédio sexual.
Desde o início da semana, a reportagem busca um posicionamento da Anvisa em relação aos casos, porém, a agência respondeu que “por ora, não irá se manifestar”. Tentativas de contato com Antonio Barra Torres, presidente do órgão, foram realizadas, mas não houve resposta às ligações nem às mensagens enviadas.
“Gestores chamam servidor de burro”
“Há um clima de gestão bastante complicado, há gestores que chamam o servidor de burro, que mudam o servidor de área sem justificativa, e isso reflete muito na questão do adoecimento dos servidores. Nos últimos anos tenho acompanhado a quantidade de colegas que se afastaram por atestado psiquiátrico, o que é preocupante. Há poucos relatos formais porque mesmo quando chega às instâncias superiores, a atitude é de abafar, o processo é sempre trocar o servidor que é a vítima de área.” (Servidor)
“Não dá para entender a necessidade de portar arma dentro da agência”
“O porte de arma por parte de funcionários da presidência, da proximidade de Barra Torres, é um assunto comentado em grupos de mensagens de funcionários. No geral, os comentários são no tom de apreensão. Não dá para entender a necessidade de andar armado dentro da agência. Nesse ponto, ficamos preocupados se isso pode ser uma forma de intimidar servidores, fazer com que realmente não denunciem abusos.” (Servidora)
“Trabalho se tornou um pesadelo”
“Ter sofrido assédio dentro da agência, para mim, foi uma paulada na cabeça. Eu me senti muito mal e tive danos psicológicos, fiquei com medo de sair de casa, medo até mesmo de encontrar com a minha família. [Estar na Anvisa] era um sonho pra mim, afinal de contas, era o meu trabalho, mas acabou se tornando um pesadelo.” (Ex-servidora)
“Estagiárias são elo mais vulnerável”
“Já presenciei assessores insistindo para sair, para tomar cerveja, para ir na casa de servidoras mulheres, e essas investidas acontecem, principalmente, quando são mulheres mais jovens, as estagiárias, por exemplo, são um elo muito vulnerável, e há gestores que acabam abusando dessa relação. Em certas situações, colegas já disseram que mudaram de posição em um ambiente para evitar que o assediador olhasse para o corpo delas, preferindo ficar de frente a ele em vez de costas.”
“Força-tarefa para ‘inglês ver'”
“Depois do caso do assessor preso, foi criada uma força-tarefa para poder impedir o assédio, mas isso foi criado ‘para inglês ver’. Não há fluxos entre as áreas responsáveis por isso, e essas áreas não estão preparadas para atender esse tipo de violência ou assédio. Existe uma portaria, mas está só no papel. Não existe, de fato, um comprometimento da agência em investigar.”
R7