O El Niño, fenômeno natural responsável pelo aumento das temperaturas do oceano Pacífico, surgiu mais forte do que o esperado e tem causado fortes chuvas na região Sul e um clima quente e seco no restante país.
Segundo especialistas ouvidos pelo R7, a permanência do cenário põe a agricultura em estado de alerta e ameaça o bolso dos brasileiros nos próximos meses. O real arrefecimento dos efeitos climáticos é estimado apenas para fevereiro.
Alê Delara, diretor da Pine Agronegócios, explica que o efeito surpreendente do fenômeno resultou no aquecimento do oceano em um nível 1,5ºC superior à previsão inicial, de 0,5ºC. “Veio um ‘Super El Niño’, com um aumento de até 2ºC nas temperaturas [do Pacífico]”, diz ele.
Para André Braz, coordenador dos índices de preços do Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), o El Niño mais rigoroso tem potencial para comprometer parte da safra de 2024, a depender do volume de chuvas nos últimos dias deste ano, e impactar diretamente o preço dos alimentos.
“Se essa frente fria não for muito significativa, a situação pode se complicar, porque, se não chover agora, o enchimento dos grãos é comprometido, e, consequentemente, podemos ter um preço mais alto das commodities em 2024”, afirma Braz. “Se as chuvas realmente ocorrerem, a pressão dos preços tende a ser menor”, complementa Delara, na mesma linha de raciocínio.
O BC (Banco Central) também demonstra preocupação com o possível impacto do fenômeno climático nos preços. “O Comitê, após acumular mais evidência, elevou um pouco o impacto inflacionário do fenômeno climático do El Niño sobre a inflação de alimentos”, destaca um trecho da última ata do Copom (Comitê de Política Monetária).
O cenário também foi listado no RTI (Relatório Trimestral de Inflação) divulgado nesta quinta-feira (21) como uma das preocupações para o futuro dos preços no Brasil. “Eventos climáticos e, especificamente, a chegada do El Niño têm ampliado as preocupações com a oferta global de grãos, como trigo, milho, arroz, soja, café e açúcar”, diz o texto.
Na tentativa de driblarem os efeitos climáticos, produtores do Centro-Oeste têm assumido parte da plantação do arroz, historicamente realizada no Sul, região muito afetada pelas chuvas. “O arroz subiu muito no mundo inteiro, e os produtores com alguma condição migraram para o arroz e não estão finalizando o plantio da soja. A depender da área plantada, isso pode compensar, em parte, a redução de produtividade do Rio Grande do Sul”, relata Delara.
O movimento tende a agravar a situação da inflação de alimentos, que voltou a subir nos últimos dois meses, após uma sequência de quatro deflações apuradas entre junho e setembro. Em novembro, a alta de 0,63% do grupo de alimentação e bebidas guiou o avanço de 0,28% do IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), a inflação oficial do Brasil.
“O El Niño já reflete parte dessas variações, mas não muito, porque nessa época do ano é comum existir uma redução da oferta de alguns alimentos devido ao calor. A questão é que o fenômeno intensifica as temperaturas, o que acaba prejudicando os preços além do previsto. Não dá para culpar 100% o El Niño”, explica Braz, ao ressaltar que parte da inflação do período é sazonal.
Soja e milho são essenciais para a fabricação de rações
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Como consequência dos impactos do El Niño nas lavouras de soja e milho, a tendência se reflete na possível contaminação dos preços da carne, do frango, dos ovos e de outros alimentos, já que as rações utilizadas na alimentação do gado e das aves são produzidas a partir das duas commodities.
“A oferta dessas commodities vai influenciar diretamente nos produtos que os consumidores compram nos supermercados, como as carnes, o óleo de soja, os derivados de milho e as massas, que devem aumentar de preço no primeiro semestre de 2024”, prevê Delara.
André Braz reforça que o milho e a soja são a base do trato animal na pecuária, e as eventuais altas chegam, inevitavelmente, até o bolso das famílias. “É provável que os preços de todos os derivados avancem, porque as aves dependem do milho para a produção de ovos, e isso afeta outros alimentos.”
O pesquisador da FGV/Ibre destaca ainda que as proteínas são os produtos mais afetados pelo efeito dominó. “Neste ano, a situação foi favorável, porque o milho e a soja caíram muito de preço. Graças a essa queda de quase 30%, as carnes não foram as vilãs da inflação”, recorda.
O diretor da Pine Agronegócios estima ainda que o efeito cascata envolva algumas hortaliças, que já tiveram movimento de alta, e outros grãos. “O feijão pode ser impactado, porque o atraso do plantio da soja vai retirar uma parte da janela de plantio do milho de primeira safra”, observa ele.