Já é realidade: pesquisa com insetos desenvolve salsicha e pão feitos com larva de mosca
O ano é 2026. O mundo virou gelo. A vida só é possível a bordo de um trem que percorre o planeta gerando eletricidade com o movimento. A sociedade é dividida em castas, dispostas em vagões. À frente do trem, uma elite com pleno acesso a alimentos e água. Nos fundos, os trabalhadores clandestinos que se alimentam somente de uma barra proteica feita (alerta de spoiler) a partir de baratas trituradas. Essa é a história do filme/série Expresso do Amanhã, ou Snowpiercer, em inglês. Pura ficção, só que não.
A história disponível no streaming retrata uma crise alimentar que abateu o mundo após uma catástrofe climática. E a alimentação por insetos é uma das saídas encontradas para manter parte da sociedade (a mais pobre) viva. Tem tudo a ver com o que estávamos vivendo agora, em 2023. A ONU calcula que cerca de 2,3 bilhões de pessoas estejam em situação de insegurança alimentar grave ou moderada. Ou seja, não comem o suficiente tanto do ponto de vista nutricional quanto quantitativo.
Parte do problema está na carência de proteínas. E é aí que entram os insetos. Alguns estudos nessa área já estão avançados e prontos para passar para a etapa de aprovação para consumo, aqui no Brasil. Um deles foi desenvolvido na Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) da USP e usa uma mosca como a principal fonte de nutrientes.
Trata-se deste bichinho na foto à esquerda, mosca-soldado-negra (Hermetia illucens), conhecida em inglês pela sigla BSF, de black soldier fly. Essa espécie já é usada por aqui na produção de ração para animais desde 2020 e agora está sendo empregada em farinhas e salsichas.
Calma, não tem nada ainda no mercado sendo vendido com larva de mosca — pelo menos não no Brasil. Se na Ásia comer alguns insetos como grilos e larvas fritos já é considerado um hábito (existem até pacotes de larvas de bambu congeladas à venda em supermercados tailandeses, por exemplo), por aqui estamos na fase de estudos.
Pacote de larvas de bambu vendido em mercados tailandeses
FAO/ONU
Conversei com a pesquisadora Vanessa Aparecida Cruz, que desenvolveu a pesquisa da USP. Ela explicou que as moscas-soldado-negras são muito usadas na produção de ração para peixes no Brasil.
“As larvas de mosca-soldado-negra são ricas em proteína, depois de desengorduradas chegam a ter até 50%, sendo um produto altamente proteico; além disso, contêm concentrações elevadas de lipídios (32%), aminoácidos e compostos bioativos, por isso sendo o inseto escolhido”, conta.
Pesquisadores da USP estudam o uso de insetos na alimentação
LUIZ PRADO/ USP IMAGENS
O processo é, resumidamente, assim: com as larvas da mosca trituradas se faz uma farinha superproteica. Se comparada com vegetais, ela tem mais de 30% de proteínas contra 23,5% do feijão e 26,7% da lentilha. Além disso, as larvinhas trituradas têm digestibilidade melhor do que algumas proteínas vegetais e animais, o que ajuda na saúde intestinal.
“Nesta pesquisa, as larvas de mosca-soldado-negra, devidamente higienizadas, abatidas e secas, foram trituras em laboratório (moinhos) até virarem farinha. A farinha foi submetida a um processo de extração com dióxido de carbono supercrítico, um processo limpo, que não deixa resíduo de solvente orgânico tanto no óleo extraído quanto na farinha. Neste método de extração é usado solvente verde e seguro para a saúde. O alimento preparado com extração supercrítica pode ser diretamente empregado em alimentos e fármacos por não conter resíduos de solventes tóxicos. Além disso, este processo usa baixas temperaturas e não degrada a composição dos produtos obtidos”, explica Vanessa.
Com a farinha é possível fazer pães do tipo francês e outras massas, como macarrão e biscoitos. Há também a possibilidade de uso na produção de salsichas — substituindo cerca de 5% da carne “tradicional”.
A produção das larvas é considerada muito mais sustentável que a produção de carne bovina, por exemplo. Usa menos água e joga menos gás carbônico na atmosfera. Além disso, reaproveita restos de comida de restaurantes na alimentação das moscas.
O cultivo pode ser feito em pequenos espaços. “A farinha desengordurada não apresenta sabor nem odor; quando adicionado na salsicha, não apresentou nenhum sabor residual no produto final. Foi realizada a análise sensorial no produto, e os resultados foram muito satisfatórios, mostrando uma boa aceitação pelos provadores. A farinha contém teores elevados de fibras, aminoácidos essenciais, minerais e possui alta digestibilidade quando comparada com as proteínas de animais bovinos e suínos”, conta Vanessa.
Mosca-soldado-negra e farinha de larvas
LUIZ PRADO/ USP IMAGENS
Vanessa conta também que esses produtos serão viáveis comercialmente: “Os produtos serão ricos em nutrientes, com isso agregando maior valor econômico, pois hoje em dia as pessoas estão em busca de alimentos que tragam algum benefício para a saúde e que sejam sustentáveis. Os produtos a partir da farinha de insetos serão altamente nutritivos, e o óleo está sendo usado em estudos com cosméticos”.
Para que os insetos na alimentação se tornem uma realidade, há ainda algumas etapas a percorrer no Brasil.
“Os órgãos responsáveis relatam ainda não ter nenhum pedido para aprovação, mas no Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) neste ano já começou a regulamentação para utilização de insetos para alimentação animal, isso abrindo portas para pedidos futuros para alimentação humana. Para a regulamentação de um produto novo, é necessária uma investigação minuciosa sobre o produto, passando por várias etapas de análises físico-químicas e microbiológicas até a aprovação final. Para comprovar se este alimento é seguro e não causará nenhum dano aos consumidores”, finaliza Vanessa.
Segundo a ONU, a população mundial deverá atingir em 2050 o número de 9,7 bilhões de habitantes, com um aumento de 68% na demanda por proteína animal. Por que não pensar nos insetos? Parece nojento, mas você realmente sabe o que tem dentro da salsicha que você consome diariamente? E em quais condições o animal que dá origem a ela é criado, abatido e armazenado?
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