Narrativa presente nos quatro Evangelhos canônicos – Mateus, Marcos, Lucas e João – o batismo de Jesus teria acontecido no início de sua vida pública. Ou seja: quando ele tinha cerca de 30 anos.
Ele teria ido até o rio Jordão, onde um pregador itinerante conhecido como João, o Batista, costumava mergulhar seus seguidores na água como símbolo de conversão.
Mais tarde, a prática acabou sendo incorporada pelos cristãos como forma de marcar o início da vida na religião.
Se para os que vinham de outra fé este início seria a conversão, no caso dos filhos dos cristãos o batismo passou a ocorrer pouco tempo após o nascimento.
Mas no século 16, em meio à chamada Reforma Protestante, durante a qual emergiram questionamentos quanto ao monopólio da fé que a Igreja Católica representava para o Ocidente e uma certa abertura às diversidades de pensamentos, floresceu uma denominação religiosa que, ao contrário da grande maioria, não tinha um poder central — a Igreja Batista.
Essa igreja foi uma das que cresceram fazendo o oposto do que era convencional: negando-se a batizar as crianças. Para os batistas, só pode receber o batismo aquele que já tem a consciência formada.
Em termos técnicos, eles são contrários ao pedobatismo e defendem o credobatismo.
Muitos atribuem a fundação da Igreja Batista aos ingleses John Smyth (1570-1612) e Thomas Helwys (1550-1616), duas figuras ilustres da história.
“Essa coisa de não batizar crianças é o traço marcante dos batistas”, afirma à BBC News Brasil o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“Na Igreja Batista, os filhos dos crentes são apresentados quando vão à igreja pela primeira vez, mas só se tornam membros da igreja no dia em que passam pelas águas. Isso é um traço típico”, acrescenta.
Inspiração aos pentecostais
Mas a imagem de adultos sendo batizados não soa estranha ao brasileiro contemporâneo — o chamado credobatismo é prática na maioria das igrejas neopentecostais em um país cujo avanço dos evangélicos é constante.
“Ela [a Igreja Batista] foi decisiva para criar um modelo que os pentecostais seguem, pois eles também valorizam o batismo nas águas. Mergulhar as pessoas é típico da tradição batista”, complementa Moraes.
“Esse é um ponto muito comum nas igrejas evangélicas brasileiras hoje, mas era um diferencial enorme [nos séculos 16 e 17]”, comenta o historiador e teólogo Vinicius Couto, doutor em ciências da religião pela Universidade Metodista de São Paulo e professor do Seminário Teológico Nazareno do Brasil e do Seminário Batista Livre.
Não é por acaso. A Igreja Batista, ou uma dissidência dela, está por trás do pontapé inicial para esse crescimento pentecostal no Brasil, a partir dos anos 1960.
“Hoje, o movimento batista é muito fragmentado no Brasil, com diversas denominações”, explica Couto. “Mas talvez a mais significativa seja uma cisão ocorrida em 1964, influenciada pelas questões carismáticas.”
Ele se refere a uma história ocorrida em Belo Horizonte, Minas Gerais. Ali já existia, desde 1957, uma igreja batista chamada Lagoinha, no bairro homônimo, que havia sido fundada por um pastor chamado José Rego Nascimento.
A igreja era membro da chamada Convenção Batista Brasileira. Mas o pastor decidiu fazer a chamada “renovação espiritual” da mesma, incorporando elementos fundamentalistas do que acabaria conhecido como pentecostalismo ou neopentecostalismo.
Era uma tendência cristã que já fazia muito sucesso em outros países, como nos Estados Unidos. A adesão ao modelo, contudo, acarretou divergências com a Convenção Batista que terminaria expulsando a Lagoinha do grupo.
Para resolver o imbróglio, Nascimento resolveu criar uma nova denominação. Assim nasceu a Igreja Batista da Lagoinha, ou simplesmente IBL, atualmente com quase 100 mil adeptos, mais de 100 igrejas, sob o comando do midiático pastor André Valadão.
“Foi um movimento influenciado por questões carismáticas, de influência pentecostal. Esse movimento forte [ocorrido em Belo Horizonte] acabou gerando um carismatismo em outras igrejas tradicionais, como a Presbiteriana e a Metodista”, diz Couto.
De certa forma, a onda pentecostal contemporânea que se espalhou pelo Brasil nasceu ali, em Lagoinha. Por isso os batismos de adultos, com imersão, se tornaram comuns no país.
Esse processo foi facilitado por uma característica histórica dos batistas — que também seria incorporado por boa parte das igrejas pentecostais da atualidade: uma certa independência de cada unidade.
“Os batistas são congregacionais, o que significa que cada Igreja Batista é uma congregação própria, com vida própria”, explica Moraes.
“Seus membros elegem seu pastor e eles não estão vinculados a um sistema episcopal, comandado por um bispo, como nas igrejas Católica ou Anglicana, ou conciliar, em que igrejas locais são ligadas a um presbitério, a uma determinada região, como a Presbiteriana.”
Os dois ingleses
Para entender a raiz de todas essas ideias é preciso voltar aos dois ingleses que nasceram no século 16, o Smyth e o Helwys.
O primeiro era sacerdote da Igreja Anglicana. O segundo, advogado, foi quem o defendeu quando ele acabou rompendo com o anglicanismo, em 1606.
No ano seguinte ao desligamento da Igreja Anglicana, os dois amigos acabaram se mudando para Amsterdã. Ali estabeleceram um pequeno grupo de crentes dedicados a estudar a bíblia.
“Smyth estava em um momento de discórdia de alguns pontos da Igreja Anglicana e teria se aproximado dos menonitas [um movimento evangélico que já defendia o credobatismo]”, contextualiza Moraes.
“E examinando ali a Bíblia ele acaba chegando à essa conclusão, de que as pessoas que deveriam fazer parte da igreja seriam aquelas que tomassem a decisão de se batizar com consciência.”
“Assim, batizar crianças seria um erro. A pessoa deveria se batizar quando ela tivesse consciência do ato e isso seria o sinal de entrada na igreja”, complementa.
E o batismo por imersão, vale ressaltar.
Essa ideia é fundamentada, do ponto de vista dos textos sagrados. Porque etimologicamente, a palavra batismo tem origem grega e significa “imergir”, “banhar”, “lavar” — e também “purificar”.
Em 1609, Smyth batizou todos do grupo em Amsterdã, incluindo Helwys e si próprio. Por conta disso, como ressalta o verbete dedicado a ele pela Enciclopédia Britannica, ele passou a ser conhecido como “o autobatista”.
Para a maior parte dos historiadores da religião, este episódio é considerado a fundação da primeira Igreja Batista, de forma organizada.
Logo depois, contudo, Smyth manifestaria o desejo de se tornar um menonita e acabaria excomungado da igreja que havia criado. O bastão seguiu com Helwys, que em 1611 escreveu “Uma Declaração de Fé do Povo Inglês Remanescente em Amsterdã na Holanda”, cujos 27 artigos são considerados a primeira confissão batista de fé.
“É uma espécie de documento basilar da igreja”, diz Couto.
Helwys retornou à Inglaterra em 1611 e, no ano seguinte, fundou nos arredores de Londres a primeira Igreja Batista do país.
No ano seguinte publicou um folheto criticando a monarquia inglesa, o papa e os puritanos. Por conta disso, foi levado para a prisão, onde morreria em 1616.
Princípios
O desenvolvimento da nova denominação religiosa foi paulatino e gradual, conforme conta Moraes.
“Houve uma construção histórica. A adoção do batismo por imersão, por exemplo, que hoje é uma marca de muitas igrejas no Brasil, acabou ocorrendo apenas em 1642”, diz o historiador. Dois anos depois disso, o método acabou sendo publicado em documento da igreja.
“É a prática de se levar a pessoa para o batismo em piscina ou água corrente. Nas igrejas calvinistas e na católica, por exemplo, o que se faz é o batismo por aspersão, ou seja, goteja-se um pouco de água na cabeça da pessoa”, compara ele.
O importante para os batistas, lembra Couto, é que os batizados sejam conscientes porque a lógica dessa igreja é que ela “é formada por membros que são regenerados”.
“O batismo, assim, é um sinal externo de uma graça interna. A pessoa [antes de ser batizada] já nasceu de novo, e vai confirmar isso por meio dessa ordenança”, explica ele.
Nos princípios batistas também está a ideia de que a Bíblia é a regra de fé e de prática — fundamento comum a outros protestantes — e a defesa da liberdade de consciência.
“Para um batista, não se deve coagir a consciência das pessoas obrigando ninguém a acreditar no que se acha que é o certo”, comenta Couto.
Outra peculiaridade está na eucaristia, ou seja, na maneira como se celebra a ceia cristã.
Para os católicos, ali ocorre a transubstanciação, ou seja, o sacramento ensina que o pão e o vinho se transformam em corpo e o sangue de Cristo.
Para os luteranos, a consubstanciação — o corpo e o sangue de Cristo se juntam aos elementos da eucaristia.
“[Os batistas] vêm com a ideia memorialística, [fazendo da eucaristia] um memorial para lembrar do que Cristo fez. Não é um sacramento”, aponta Couto.
A forma de organização também é diferente da maioria das outras igrejas. Tanto no fato de que cada unidade tem uma certa independência, favorecendo a coexistência de linhas um tanto distintas — algo que se tornou comum na grande maioria das pentecostais contemporâneas no Brasil — quanto na simplicidade da hierarquia.
“Eles têm apenas dois cargos: o pastor e o diácono”, diz Couto.
Assim como as outras igrejas de base protestante, os batistas também defendem a salvação pela graça mediante a fé, e não por obras.
“E o sacerdócio universal de todos os crente, ou seja, de que não há a necessidade de um mediador para ter acesso a Deus”, acrescenta o teólogo.
Expansão e chegada ao Brasil
Da Inglaterra, logo os batistas chegaram às colônias situadas onde hoje são os Estados Unidos.
“Acontece que muitos desses religiosos acabaram sendo perseguidos no ambiente inglês, […] o que fez com que muita gente fosse pra os Estados Unidos, no caso as 13 colônias britânicas na América”, ressalta Moraes.
A primeira igreja batista em solo americano foi fundada pelo pastor Roger Williams (1603-1683), em 1638, na colônia que ele fundou com o nome de Rhode Island, hoje um dos estados americanos.
“Os batistas acabaram se espalhando pelo sul dos Estados Unidos e hoje são muito fortes ali”, comenta o historiador.
A Convenção Batista do Sul, no estado do Tennessee, arregimenta cerca de 16 milhões de adeptos, o que faz do grupo o maior dentre os batistas de todo o mundo e a maior comunidade evangélica dos Estados Unidos.
Missionários batistas começaram a ser enviados para outras partes do mundo a partir do século 18, principalmente após o fim da Guerra de Secessão, em 1865.
“Com o fim da guerra civil, muitos sulistas americanos, que perderam o conflito, os confederados, acabaram fugindo. Um grupo estabeleceu uma colônia no interior de São Paulo, onde hoje são Americana e Santa Bárbara do Oeste”, contextualiza Moraes.
Ali foi fundada a primeira Igreja Batista do Brasil, em 11 de setembro de 1771, com cerca de 30 membros. Mas ainda era algo de nicho, uma igreja em que os membros por aqui eram todos americanos.
Paralelamente a isso, Couto relata que passaram a chegar ao país diversos missionários geralmente batistas ou metodistas.
“Eles vinham como vendedores de Bíblia, mas acabavam aproveitando para evangelizar também. Acabaram sendo chamados de protestantes de missão”, conta.
Em 1778, os batistas ganharam um integrante local: o padre Antônio Teixeira de Albuquerque (1840-1887) rompeu com a Igreja Católica e se tornou não só o primeiro batista brasileiro como também o primeiro pastor batista brasileiro.