Anielle Franco diz que importunação sexual de Silvio Almeida começou há um ano: ‘Situações que mulher nenhuma deveria passar’
Foi ao ar no Fantástico deste domingo (6) uma entrevista com Anielle Franco. A ministra da Igualdade Racial, que prestou depoimento à Polícia Federal esta semana, falou sobre a denúncia de importunação sexual que levou à demissão de Silvio Almeida, ex-ministro dos Direitos Humanos. À repórter Sônia Bridi, Anielle falou sobre os episódios de importunação, disse por que demorou para levar o caso a público e refletiu sobre a violência que atinge até mesmo mulheres em posições de poder, como ela.
Sônia Bridi, repórter: Como foi falar sobre isso formalmente já em uma denúncia à polícia?
Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial: Nenhuma situação de violência é fácil, né? Ainda mais para quem vive, para quem está ao redor. No primeiro momento, eu optei pelo silêncio. A exposição indevida faz com que a gente repense, pense. Então, tem uns estágios ali que fazem você se sentir culpada, insegura, vulnerável, e eu decidi que falaria primeiro nas instâncias devidas. Mas foi um momento de relembrar… A única vez que eu entrei para depor foi após a morte da minha irmã. E eu estava entrando ali para uma outra violência, que não se compara em hipótese nenhuma, mas ainda assim é uma violência. Ainda assim, eu precisei refletir, pensar, viver tudo o que tinha acontecido de novo. Mas eu sabia que não era só por mim também. Era, sim, pela Anielle que foi vítima, mas também pela Anielle ministra de Estado que precisa inspirar e cuidar de outras mulheres. Então, foi um depoimento onde dou todos os detalhes, onde relembro cada momento e cada ato de violência que eu passei.
A violência a que a ministra da Igualdade Racial se refere é a importunação sexual, e o acusado é o ex-ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida. Quando Anielle Franco se sentou para falar com o Fantástico, tinha se passado um mês desde que as denúncias contra Silvio Almeida tinham sido reveladas. Uma delas seria a denúncia da ministra. Até esta semana, Anielle Franco não tinha falado publicamente sobre o assunto.
Sônia Bridi: Como era a relação de vocês?
Anielle Franco: Primeiro que a gente nunca teve nenhum tipo de relação antes de começarmos a trabalhar no mesmo governo. Isso é um ponto. Segundo, que a gente também nunca teve nenhum tipo de intimidade para que eu desse qualquer tipo de condição para ele fazer o que ele fez. Nenhuma. Existe uma coisa na sociedade que a gente precisa diferenciar: o que é se aproximar ou cantar uma pessoa com respeito, e o que é violentar, importunar e assediar uma pessoa. É bem diferente isso. E a gente precisa parar de normalizar quando uma mulher fala que passou por alguma coisa desse tipo e falar: ‘Ah, mas ela não deu condição? Ah, mas será que…’. Será nada. A vítima é a vítima. A palavra da mulher precisa valer.
Sônia: Bridi: Quando foi que a senhora percebeu que tinha algo errado nesse relacionamento?
Anielle Franco: A gente sabe quando a pessoa vem de uma maneira ingênua ou de uma maneira respeitosa, ou não. Tinham diversas atitudes e momentos nos quais eu percebia e sentia maldade, e sentia também outras intenções desrespeitosas. E quando você não dá, que sabe que a verdade está com você, você percebe, você sente o que a outra parte está fazendo.
Segundo Marina Ganzarolli, advogada de gênero e presidente do Me Too Brasil, a demora na denúncia é muito comum nos casos de violência sexual:
Desde que o escândalo veio à tona, o número de ligações ao Me Too, que apoia mulheres vítimas de violência sexual, subiu quase 80%.
Sônia Bridi: Quanto tempo durou? Quando foi que começou isso?
Anielle Franco: Durou alguns meses, assim, mais de ano, na verdade. Começa com falas e cantadas mal postas, eu diria. E vai escalando para um desrespeito pelo qual eu também não esperava. Até situações que mulher nenhuma precisa passar, merece passar ou deveria passar.
Sônia Bridi: Uma das coisas que foi publicada, que saiu na imprensa, é que ele teria tocado a senhora por debaixo da mesa durante uma reunião.
Anielle Franco: É. Desculpa, gente.
A reunião foi no dia 16 de maio de 2023.
Anielle Franco: A gente tem pelo menos 30 milhões de mulheres no país que vivenciaram ou vivenciam algum tipo de violência ou de importunação sexual ou de assédio. E não é normal a gente passar por isso em pleno 2024, independente de quem faça, sabe? Você tocar, assediar ou violentar o corpo de uma mulher é uma das coisas mais abomináveis que pode existir. Mas é por isso, Sônia, que toda vez que eu preciso falar sobre isso, lembrar disso, eu digo para mim mesma que, sim, Anielle foi vítima. Mas Anielle, hoje, enquanto ministra de Estado, enquanto mãe, feminista, negra, irmã, tem uma responsabilidade também nesse lugar de combater e de fazer com que esse país vire um lugar melhor para todos nós.
Anielle Franco: Eu sempre achei que todo e qualquer problema que acontecesse na minha vida eu seria capaz de resolver sozinha. Nós, que somos mulheres pretas, de favela, temos muito isso. Eu aprendi muito isso com a minha mãe, com a minha irmã. Teve um momento em que eu achei que conseguiria.
Sônia Bridi: Achava que ia parar sozinho?
Anielle Franco: Eu achava, e eu achava também que, quando eu falasse, eu seria respeitada.
Sônia Bridi: E não foi?
Anielle Franco: Não. E esse foi o último momento em que eu tentei. Quando de fato mais uma barreira é rompida, mais uma fala ou desrespeito acontece. E aí eu entendi que não tinha como.
Sônia Bridi: Ele usava uma linguagem chula?
Anielle Franco: Ele era bem desrespeitoso. Bem desrespeitoso.
Sônia Bridi: O fato de ele ser um homem preto ocupando um cargo onde é tão difícil os pretos chegarem no Brasil, de certa forma também era um entrave para que você se manifestasse?
Anielle Franco: Olha, essa sua pergunta acho que traz uma reflexão muito importante. Nenhuma violência cometida por um indivíduo pode resumir ou diminuir a luta e a conquista do movimento negro. Uma luta que é histórica, uma luta que é de resistência. Assédio é assédio, violência é violência, importunação é importunação. Isso precisa ser combatido, independente de quem faça, independente de questão social ou racial. Isso precisa ser combatido. Isso não é tolerável. Não pode ser.
Sônia Bridi: Como a senhora se sente agora?
Anielle Franco: É uma mistura de sentimentos que vêm na gente. Ao mesmo tempo em que eu me senti invadida, vulnerável, exposta, eu também sinto uma gana danada de lutar por um lugar mais justo para mim e para você. Eu, Anielle, não permitirei que a minha história seja resumida à violência.
No mesmo dia em que a denúncia contra ele se tornou pública, Silvio Almeida usou o site do Ministério dos Direitos Humanos para publicar uma nota e postou um vídeo nas redes sociais negando as acusações.
Sônia Bridi: Qual é a posição do seu cliente, da defesa, diante dessas múltiplas acusações de importunação sexual?
“Em primeiro lugar, ele nega veementemente todas essas referências feitas em desfavor dele. Em segundo lugar, e o mais importante, é que essa investigação, para a defesa, continua sigilosa. Nós não tivemos acesso a nenhum depoimento — nem da ministra, nem de outras pessoas. Sabemos através da imprensa. O que não é razoável é que, em plena vigência da Constituição, que se chama de ‘Constituição Cidadã’, a defesa saiba de episódios esparsos a partir do noticiário, da imprensa escrita, falada, televisada. Evidentemente, quando esses fatos forem impostos – esses fatos não, essas versões -, vamos contraditar todos eles e a verdade vai prevalecer”, diz Nélio Machado, advogado de Silvio Almeida.
G1