O Afeganistão se tornou um pesadelo insuportável para as mulheres desde 15 de agosto de 2021. Naquele dia, o Talibã destituiu o então presidente do país, Asharf Ghani, assumiu o controle da capital, Cabul, e voltou ao poder depois de mais de 20 anos. Hoje, o país enfrenta uma crise de saúde mental entre as mulheres, as principais afetadas pelo grupo fundamentalista. Muitas não veem saída a não ser acabar com a própria vida.
As autoridades talibãs não publicam dados sobre suicídios e proibiram os profissionais de saúde de partilhar estatísticas atualizadas em várias províncias. Apesar do impedimento, esses profissionais vazaram informações referentes ao período entre agosto de 2021 e agosto de 2022 para ressaltar uma crise urgente de saúde pública.
Os números foram compartilhados com repórteres do Zan Times, jornal investigativo liderado por mulheres que cobre violações dos direitos humanos no Afeganistão. Segundo o site do veículo, a equipe é composta de jornalistas que trabalham dentro e fora do país e escrevem reportagens em inglês.
As estatísticas são parciais, mas fornecem um panorama significativo sobre a saúde mental no Afeganistão. Os dados sugerem que a nação se tornou uma das poucas no mundo onde mais mulheres do que homens morrem por suicídio.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, globalmente o número de homens que tiram a própria vida é mais do que o dobro daquele verificado entre as mulheres. No Afeganistão, até 2019, o último ano para o qual há dados oficiais disponíveis, mais homens do que mulheres se suicidaram, mas isso mudou depois da volta do Talibã.
Das 11 províncias pesquisadas pelos profissionais de saúde, apenas em uma delas os homens foram responsáveis pela maioria das mortes e tentativas de suicídio. Essa província é Nimruz, região em que as pessoas, em sua maioria homens, arriscam-se em tentativas perigosas de entrar ilegalmente no vizinho Irã. Aqueles que falham na tentativa de ultrapassar a fronteira por vezes tiram a própria vida.
Com a volta do Talibã, as mulheres passaram a representar mais de três quartos das mortes por suicídio registradas, dado que inclui ainda as tentativas de tirar a própria vida. A maior parte das vítimas era de mulheres jovens, ainda no início da adolescência. Os números provavelmente são subnotificados, uma vez que o suicídio é considerado vergonhoso em países muçulmanos e, muitas vezes, encoberto. Algumas mulheres que tentam o suicídio não são levadas para tratamento, e algumas que morrem são enterradas sem registro de que tiraram a própria vida.
O suicídio é um sinal de que as pessoas sentem que não há esperança
“A situação é terrível”, afirma Anjhula Singh Bais, presidente do Conselho da Anistia Internacional e também psicóloga especializada em trauma. “Muitos psicólogos que fazem trabalho de campo pelo mundo, inclusive eu, têm falado que a situação agora é crônica. Os traumas, a opressão e as violações são imensas. O suicídio é um sinal de que as pessoas sentem que não há esperança. No Afeganistão, atingiu-se uma consciência coletiva de desesperança.”
O médico psiquiatra Sharafuddin Azimi, professor associado na Universidade de Cabul, conta que seu número de pacientes — mulheres, em especial — aumentou significativamente depois da volta do Talibã. Em 2019, ele atendia cerca de 1.300 pessoas por ano. Agora, estima que esse número varie entre 2.300 e 2.400. Em média, Azimi diz atender entre 50 e cem pessoas a cada semana.
As restrições impostas pelo grupo fundamentalista são a principal queixa no consultório. Os sintomas mais frequentes relatados pelas pacientes são aqueles relacionados a depressão, ansiedade e síndrome do pânico. Algumas pessoas alegam ter desenvolvido certos tipos de vício para lidar com suas questões.
“As mulheres vêm até mim e dizem: ‘Estamos deprimidas e desesperançosas. Não temos um futuro. O que devemos fazer?'”, relata Azimi. “Toda semana converso com pacientes que dizem querer tirar a própria vida. É desesperador.”
Desde a volta do Talibã ao poder, meninas e mulheres tiveram seus direitos e liberdades tolhidos. Elas só podem estudar até o fim do ensino fundamental, que no Afeganistão vai até a 6ª série. As mulheres não têm acesso ao ensino superior e não podem construir uma carreira.
Com o acesso à universidade limitado aos homens, elas foram excluídas também do mercado de trabalho. Segundo uma pesquisa da Organização Internacional do Trabalho (OIT), no quarto trimestre de 2022 o emprego feminino teve redução de 25% em comparação com o segundo trimestre de 2021, período que antecedeu a volta do Talibã. Mulheres também não podem trabalhar em ONGs nem ocupar cargos públicos e judiciários.
Restrições tão ou mais chocantes incluem o fato de as mulheres não poderem frequentar diversos locais, como parques, jardins, academias, espaços esportivos e banheiros públicos. Para sair às ruas, elas precisam estar devidamente cobertas com a burca. A vestimenta esconde todo o corpo, até mesmo o rosto, e conta com uma estreita tela à altura dos olhos para permitir a visão.
Em julho deste ano, o Talibã também mandou fechar todos os salões de beleza, que constituíam os únicos espaços de liberdade e socialização que ainda restavam às mulheres. De acordo com a Câmara de Comércio e Indústria para as Mulheres Afegãs, a proibição afetou cerca de 60 mil mulheres, que trabalhavam em 12 mil salões de beleza e tinham os estabelecimentos como única fonte de renda.
Anjhula Singh Bais explica que o Talibã não permite a entrada de organizações de direitos humanos no Afeganistão. Apesar disso, é possível verificar a situação a distância, uma vez que “as metodologias de pesquisa empregam uma ampla variedade de táticas”.
“A Anistia continua a fazer apelos à ONU para que tome medidas contra os abusos implacáveis cometidos pelo Talibã. Em um mundo com múltiplas crises, parece haver uma falta de interesse na situação das afegãs. Precisamos continuar a falar e a agir”, afirma Anjhula.
A ONU Mulheres foi procurada pela reportagem para comentar a crise de saúde mental no Afeganistão, mas não quis se pronunciar.
Hosa Niazi, de 23 anos, que não quis ter a imagem revelada para preservar sua identidade, vive em Cabul e é uma das várias mulheres afegãs que tiveram a saúde mental afetada pelas restrições do regime talibã. Ela conta que se sente deprimida, desesperançosa e que, por vezes, chegou a pensar em acabar com a própria vida.
Antes da volta do grupo fundamentalista ao poder, a jovem tinha uma rotina bastante ativa — estudava, trabalhava e tinha um futuro brilhante pela frente. Agora, ela passa os dias em casa, sem perspectiva.
“Eu acordava bem cedo pela manhã e, em seguida, saía para passear no parque — às vezes só, às vezes com minha mãe e irmã”, afirma Hosa. “Quando me sentia cansada, dormia até mais tarde, tomava banho e me arrumava para ir à faculdade, onde ficava até as 17h. Estava no terceiro semestre do curso de administração de empresas e era uma das melhores da turma.”
O mundo estava em plena pandemia de Covid-19 quando o Talibã retomou o controle do Afeganistão, em 15 de agosto de 2021. No primeiro e no segundo semestres daquele ano, os jovens não puderam ir à escola nem à universidade por causa da rápida disseminação da doença.
As aulas foram retomadas no início de 2022, mas com várias restrições impostas pelos radicais, como o uso obrigatório do hijab. Hosa conta que foi naquela época que ela usou o véu islâmico pela primeira vez. Embora nunca tenha tido vontade de trajar a vestimenta, ela não hesitou em fazê-lo.
No fim de 2022, Hosa relata que ouviu rumores de que o Talibã proibiria as mulheres de frequentar a universidade, mas não acreditou. Dias depois, em 22 de dezembro, o grupo fundamentalista suspendeu o acesso delas ao ensino superior em todo o país “até nova decisão”. Hoje, elas continuam sem estudar, e não há nenhuma perspectiva de que isso mude.
Além de cursar administração de empresas, Hosa fazia parte de um grupo da ONU, Mulheres no Afeganistão, e trabalhava em uma ONG para crianças órfãs. Ela também sonhava em montar a própria loja online e havia juntado dinheiro para pôr o projeto em prática. Depois da volta do Talibã, porém, todos os seus planos se desfizeram.
“Eu queria começar minha loja online e estava apenas esperando o início do inverno para fazer isso. Mas quando ele [o Talibã] chegou, eu estava tão deprimida que só sabia chorar. Eu só chorava. Eu não tinha nada”, diz Hosa.
“Agora estou tentando começar algo novo, mas toda vez que penso em fazer isso há uma voz na minha cabeça que me diz ‘não vai dar certo’. Tudo está acabado aqui. Não temos mais nada. O que fazemos é só comer e dormir”, acrescenta.
Hosa acredita que o único futuro possível para ela e outras mulheres afegãs seja fora do Afeganistão. Ela já pensou em solicitar visto humanitário a algum país que a acolha, mas pensa que não teria como fazê-lo neste momento.
A jovem tem vários parentes e amigos que saíram do Afeganistão e foram viver em países vizinhos, como Paquistão, Irã e Índia — especialmente o Paquistão, que é o território mais perto e a alternativa mais fácil. Mas o custo de vida nesses países é mais elevado do que no Afeganistão, e ela não tem ninguém que poderia ajudar sua família a se manter em outro país.
“Nós não temos dinheiro suficiente. Como podemos ir embora? Nossos amigos e familiares nos contam que tudo é mais caro fora do Afeganistão, especialmente para refugiados. As pessoas não nos tratam bem. Por isso, não vejo alternativa a não ser permanecer aqui”, constata Hosa.
“Sempre me perguntam como eu falo tão bem, e então eu me lembro que meu avô foi professor e era mestre em psicologia em uma universidade dos Estados Unidos. Às vezes, eu gostaria que ele nunca tivesse saído de lá. Talvez hoje nós tivéssemos um futuro”, acrescenta.
Hosa não faz terapia nem toma medicamentos para melhorar a tristeza e o desânimo de viver no Afeganistão sendo uma jovem mulher. Para se sentir melhor, ela conta que às vezes sai para comprar flores para si mesma e come frutas no jardim de casa. Apesar disso, diz não se opor a tratamentos tradicionais para depressão e outros transtornos psiquiátricos, como a maioria da população.
No Afeganistão, bem como em outros países muçulmanos, a saúde mental é um tabu. Problemas como depressão e ansiedade são considerados motivo de vergonha e desonra. Segundo o psiquiatra Sharafuddin Azimi, os afegãos acreditam que devem rezar e aplicar “métodos religiosos” para resolver seus problemas de ordem psiquiátrica. Muitas vezes, os pais não conseguem ajudar seus filhos.
“Eles dizem: ‘Por que você está chorando? Você é um muçulmano, muçulmanos não têm depressão, não cometem suicídio. Você deve ser forte’. Isso torna tudo muito mais difícil para eles”, afirma Azimi.
Além do estigma, outro problema é a desinformação. A população carece de conhecimento sobre a existência de transtornos psiquiátricos e como tratá-los. Muitas pessoas nem sequer sabem o que é depressão, ansiedade, síndrome do pânico e outros tantos problemas que afetam milhões de pessoas pelo mundo.
Azimi atribui isso à ausência de campanhas sobre o assunto na mídia afegã e à falta de iniciativas do governo para lidar com a crise de saúde mental, que agora é de saúde pública. Depois da volta do Talibã, as ações, que eram insuficientes, simplesmente desapareceram.
“Eu pergunto aos meus pacientes: ‘Você sabe sobre o seu problema? Você já ouviu falar em aconselhamento?’. Eles respondem: ‘Não. O que é depressão? O que é ansiedade? Eu sei que tenho algum problema, mas não sei o que é'”, diz o psiquiatra.
Viver no Afeganistão sob o regime talibã pode ser o fim da linha para muitas mulheres. Mas há esperança fora dele. Há um ano, a jovem Hela* se mudou com a mãe e os irmãos para o Brasil, que lhes concedeu vistos humanitários. Hoje, moram em um abrigo para refugiados no bairro São Lucas, na zona leste de São Paulo.
Hela e a família saíram do Afeganistão em outubro de 2021, dois meses após a volta do Talibã ao poder. A trajetória deles até o Brasil não foi linear nem fácil. Em um primeiro momento, eles foram para o Paquistão.
Depois, voltaram para o Afeganistão por um breve período e, de lá, foram para o Irã, onde ficaram por cinco meses. Em outubro de 2022, a família conseguiu uma autorização para morar no Brasil a partir de um visto humanitário, e hoje pode chamar o país de lar. Segundo o Ministério das Relações Exteriores, o Brasil concedeu 12.399 vistos humanitários a afegãos de setembro de 2021 a agosto de 2023.
“Tenho muitos amigos e parentes que moram no Afeganistão — tio, tia, avô, avó. Sinto muita falta deles”, afirma Hela. “Não é fácil deixar tudo para trás, mas foi preciso. Não há futuro para nós no meu país.”
Apesar de nova, Hela já sabe da importância da educação na construção de um futuro próspero. Prova disso é que, em apenas um ano, ela aprendeu português e consegue se comunicar no idioma, mesmo com um vocabulário limitado.
O abrigo onde Hela vive oferece curso de português, e ela vem se dedicando às aulas para ficar cada vez melhor no idioma. Ela também adora ler, o que facilita a aproximação com o alfabeto latino. No Afeganistão, utiliza-se o alfabeto persa, o que torna a aprendizagem de um novo idioma ainda mais difícil.
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