A cana-de-açúcar poderá ser 10x mais eficaz que as células fotovoltaicas (energia solar) em potencial de descarbonização por hectare de terra no futuro, em países de clima tropical. Não é erro de digitação – repito, 10x! Essa tese foi tema de um artigo escrito a várias mãos e recentemente publicado na revista do MIT (Massashussets Institute of Technology), universidade americana de primeiríssima linha que dispensa maiores apresentações.
No meu artigo anterior, Separando o joio do trigo, ou a cana dos grãos, falei bastante sobre o crescente reconhecimento global do papel dos biocombustíveis na descarbonização, especialmente nos chamados hard-to-abate-sectors. A convicção só aumentou. Fazendo um apanhado das visões das principais consultorias sobre transição enérgica, o consumo de biocombustíveis quadruplica até 2050 em todos os cenários avaliados, dos mais agressivos aos mais conservadores na limitação de aquecimento global ou na velocidade de penetração da eletrificação. Mas a aposta está muito concentrada nos chamados waste-based-products, ou produtos renováveis desenvolvidos a partir de resíduos e que não ofereçam ameaça à produção de alimentos na competição pelo uso da terra. Mas ainda não tinha chegado num argumento realmente matador sobre esse tema.
Resolvi trazer cabeças boas para levantar o nível da discussão, buscando métricas adequadas e inteligentes de comparação que pudessem evidenciar de uma vez por todas o verdadeiro potencial da cana-de-açúcar na jornada de descarbonização, alavancando seu diferencial de eficiência no uso da terra e na conversão de energia solar em carbono renovável.
Começamos olhando estudos anteriores que comparavam energia produzida por hectare a partir de biocombustíveis com células solares fotovoltaicas, feitos em 2010. Os estudos foram feitos por pesquisadores europeus1 e usavam uma média de produção de biocombustível por hectare naqueles países, desconsiderando as particularidades de cada cultura em cada região, indicando uma vantagem de 600 vezes para os painéis solares. Bastou ajustar a produtividade “genérica” dos biocombustíveis em clima temperado para cana-de-açúcar em países tropicais num estudo subsequente para que essa vantagem ficasse entre 40 e 140 vezes em termos de energia produzida por área. Ainda que longe das nossas ambições, essas comparações nos abriram os olhos para um elemento-chave.
A desigualdade na produção de conhecimento científico entre o norte e o sul globais faz com que a busca de soluções de descarbonização fosse pautada majoritariamente pela visão de países desenvolvidos de clima temperado, desconsiderando, portanto, as vantagens competitivas do clima tropical para agricultura.
De forma simplificada, podemos dividir os fatores que contribuem para aumentar exponencialmente o potencial de descarbonização da cana-de-açúcar por hectare no tempo em três grandes blocos que, combinados, poderão aumentar o potencial de descarbonização por hectare em cerca de 30 vezes.
I) Produtividade agrícola: a produtividade média da cana-de-açúcar no Brasil é da ordem de 80 toneladas por hectare, quase 10x maior que a do milho, por exemplo, seu maior competidor na produção de etanol. A biotecnologia tem um papel crítico no aumento da produtividade agrícola. O desenvolvimento de soluções mais robustas para as variáveis ambientais, como irrigação e fertilização, pode elevar ao patamar de 90 toneladas/hectare em 2030. Até 2050, outras ações com foco em seleção, melhoramento genético e biotecnologia permitirão ganhos ainda maiores de produtividade, que poderão alcançar valores comerciais de 148 toneladas/hectare.
II) Captura de carbono biogênico (BECCS): todos os cenários de transição apontam para a necessidade de remoção de carbono da atmosfera e, entre as alternativas disponíveis para isso, existe uma grande vantagem de custo para sistemas de BECCS para recuperação do CO2 proveniente da fermentação do etanol, em razão da alta concentração relativa e pureza em que esse gás se encontra disponível no processo. Isso pode configurar um impulso adicional aos biocombustíveis, muito além da necessidade de energia apenas, potencialmente levando o ciclo de vida do etanol de cana-de-açúcar ao patamar de emissões negativas (é isso mesmo, cada litro de etanol produzido significaria retirar CO2 da atmosfera!).
III) Ampliar a gama de produtos renováveis produzidos a partir do uso da totalidade da energia contida na cana, e da utilização de todos os subprodutos ou resíduos da produção de açúcar e etanol. Essa jornada já começou com a produção de energia a partir do bagaço, com o uso mais nobre dessa biomassa para a produção de etanol de segunda geração, com a transformação da vinhaça, subproduto da produção de etanol, em biogás e biometano, substituto perfeito do gás natural fóssil ou matéria prima para a produção de fertilizantes verdes, com a utilização do carbono renovável em matéria prima para a produção de bioplásticos. E no futuro com a produção de biometanol, e-metanol ou simplesmente extração de hidrogênio da molécula de etanol, todos produtos líquidos capazes de substituir combustíveis fosseis especialmente importantes no caso dos hard-to-abate-sectors. Além disso, a partir do açúcar seria possível desenvolver produtos de alto valor nutricional como carne cultivada.
Dessa maneira, a biotecnologia aplicada ao sistema bioenergia-alimentação pode criar um ciclo virtuoso: expansão de bioenergia, produção eficiente de alimentos, otimização do uso do solo (principalmente em terras degradadas de produção de gado) e descarbonização global.
No caso das células fotovoltaicas, também é razoável assumir ganhos significativos de produtividade em função de evolução tecnológica. No entanto, dados todos os investimentos esperados em produção de energia solar e eólica em substituição ao carvão e ao gás natural, as matrizes elétricas vão se tornando mais limpas e o ganho marginal em termos de potencial de descarbonização, ou de substituição de outras fontes mais poluentes, tende a cair muito no tempo.
Sendo assim, quando comparamos adequadamente o efeito de descarbonização da cana-de-açúcar por hectare de terra em clima tropical, utilizando seus produtos em substituição às alternativas fósseis ao efeito potencialmente causado pela produção de energia solar nesta mesma área, conseguimos finalmente demonstrar que a cana-de-açúcar tem potencial de ser uma solução 10x mais eficaz do que os painéis solares.
Em tempos de releituras, ponderações e retratações de versões unilaterais da História, nos mais diversos campos, me proponho a trazer essa provocação. Historicamente, há uma discrepância enorme na produção de conteúdo científico entre o temperado e desenvolvido hemisfério Norte e as zonas tropicais em desenvolvimento do hemisfério Sul. Na prática, esse viés acaba negligenciando, nas rodas internacionais de soluções de descarbonização, o potencial gigantesco da produção combinada de biocombustíveis e alimentos em terras tropicais, com diferenciais competitivos imbatíveis no curto, médio e longo prazos.
Essa tese já está totalmente provada? Não, existem inúmeros desafios tecnológicos e econômicos. Mas olhar para todo esse potencial de contribuição para o desafio global de descarbonização com premissas incompletas ou equivocadas não nos parece ser o caminho mais promissor para torná-las uma realidade daqui a 20 ou 30 anos. Arriscaria dizer que, em muitos aspectos, são caminhos mais realistas e concretos do que simplesmente se declarar Net-Zero em 2050!
*Por Paula Kovarsky em Brasil Energia
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