Patrícia Lemos: ‘Não é boa hora para tentar vida em Portugal sem planejamento, renda ou emprego’
Consultora carioca especializada em dar suporte a quem deseja imigrar para terras lusitanas dá dicas preciosas e destaca: "Portugal está na moda no Brasil, mas é preciso organização antes de partir"
Um sonho tomou força entre muitos brasileiros diante dos riscos de encarar os desafios diários por aqui: viver em Portugal. Idioma comum, rotina segura, num país com apenas 10,3 milhões de habitantes (população menor que a da cidade de São Paulo), principais capitais europeias ao alcance de um pulo, em viagens curtas, e serviços públicos de qualidade encantam artistas, atletas, intelectuais, empresários, profissionais e trabalhadores.
Muitos deles atravessaram o Oceano Atlântico em busca de qualidade de vida na delicada rotina lusitana. Mas, nos últimos anos, fatores como diminuição de mercado de trabalho e aumento surpreendente do custo de vida em curto espaço de tempo apresentaram a conta de dificuldades a milhares de imigrantes brasileiros. Com maior ênfase aos que embarcaram à caça de oportunidade para “fazer a vida” em solo português, mas sem primeiro emprego garantido e com pouco dinheiro de reserva para enfrentar uma realidade sustentada a euro.
Em 2023, o Programa de Apoio ao Retorno Voluntário e à Reintegração, das Nações Unidas, recebeu em média quatro pedidos diários de auxílio feitos por brasileiros decididos a deixar Portugal, mas sem recurso para bancar a volta. Foram 363 casos entre janeiro e março, praticamente o triplo das 125 solicitações realizadas no mesmo período do ano passado. Desses, 97 conseguiram auxílio e retornaram ao Brasil.
A embaixada e o consulado brasileiros em Portugal também são procurados com frequência por quem busca ajuda. Mas, por lei, são obrigados a financiar o retorno apenas em casos de calamidades, como guerras e acidentes naturais.
A carioca Patrícia Lemos fez carreira no Brasil e na América Latina como executiva dos mercados digital e financeiro. Em Portugal desde 2017, trabalha como consultora e criadora de planejamento e logística para brasileiros que desejam viver por lá. Mantém um site sobre o assunto, o voumudarparaportugal.com, e tem mais de 650 mil seguidores nas redes sociais.
Nesta conversa com o R7 ENTREVISTA, ela radiografa a situação econômica atual de Portugal, destaca os principais motivos causadores de aperto para brasileiros na atualidade e enumera os cuidados a serem tomados por quem deseja desembarcar em solo português neste momento. “As coisas estão muito caras por aqui. O custo de vida subiu de forma abrupta por vários motivos. Antes de vir, é preciso pensar bem e planejar a ida com realismo. É preciso entender que, em qualquer situação, mudar de país não é o mesmo do que trocar de rua, bairro, cidade ou mesmo estado na nação em que você nasceu”, alerta. Conselho de brasileira que sabe tudo de Portugal. Acompanhe:
O momento atual é bom para brasileiros se mudarem para Portugal?
Patrícia Lemos — Depende. Cada caso é único e as situações de pessoas e famílias brasileiras com desejo atual de viver aqui são diferentes. Basicamente, pode-se dividir essa demanda em três perfis principais.
Quais são eles?
O primeiro é formado por aqueles com recursos suficientes para investir em imóveis ou negócios e sustentar uma vida confortável, tranquila e segura em solo português. Esses não encontram dificuldades relevantes. O segundo envolve profissionais que chegam com moradia e bons empregos definidos. Igualmente não enfrentam maiores problemas. Recebem, em euros, o bastante para morar bem e arcar com despesas de alimentação, transporte e educação individual ou familiar, quando é o caso. O desafio maior recai sobre cidadãos ou famílias brasileiras que chegam sem planejamento nem trabalho garantido, após terem investido na mudança tudo o que acumularam no Brasil. No aperto, gastam toda a reserva e passam por maus momentos. Como mostram os números da agência da ONU, não é raro encontrar brasileiro que queima toda a reserva em busca de emprego, não consegue ocupação e encara dificuldades extremas para retornar ao Brasil, muitas vezes com familiares.
Se alguém me pergunta hoje: “Patrícia, terei 300 euros [R$ 1.615] na mão ao desembarcar e tentar a vida em Portugal. Dá para ir?” Respondo com sinceridade: não. “Mil euros [R$ 5.380].” Também não. “Cinco mil euros [R$ 26,9 mil].” Na maioria das situações, igualmente não dará
PATRÍCIA LEMOS
O que esse grupo menos favorecido em termos financeiros precisa fazer antes de ir?
Necessita de um planejamento detalhado e realista antes de embarcar — e muitos, muitos mesmo, não têm. Se considerarmos a situação atual da economia portuguesa, o momento não é o melhor para pessoas com esse perfil tentarem a vida por aqui. Se alguém me pergunta hoje: “Patrícia, terei 300 euros [R$ 1.615] na mão ao desembarcar e tentar a vida em Portugal. Dá para ir?” Não. “Tenho mil euros [R$ 5.380].” Não dá. “Cinco mil euros [R$ 26,9 mil].” Na maioria das situações, também não dará.
Por quê?
A vida em Portugal encareceu demais em pouco tempo, e os salários não acompanharam a escalada. Estão a quilômetros dos preços. Essa é a principal causa de dificuldade para brasileiros. Aos que ainda não embarcaram, o melhor seria planejar a vinda com equilíbrio, racionalidade, e esperar por um momento menos hostil em termos econômicos. Se o objetivo for arrumar ocupação, não adianta ir para um quarto no interior, distante dos centros maiores, pois ele vai custar 300 euros [R$ 1.615], a metade do que a média do cobrado em Lisboa, por exemplo, mas não haverá o mais importante: emprego.
Se o objetivo for arrumar ocupação, não adianta ir para um quarto no interior, distante dos centros maiores, pois ele vai custar 300 euros [R$ 1.615], a metade do que a média do cobrado em Lisboa, por exemplo, mas não haverá o mais importante: emprego
PATRÍCIA LEMOS
O que levou a esse grande salto do custo de vida em Portugal em tão pouco tempo?
Estamos falando de um país calmo, seguro, bonito, atraente em termos de história e beleza natural, com excelente qualidade de vida, com apenas 10,3 milhões de habitantes, menos do que o total da cidade de São Paulo. E com 23% das pessoas, na prática uma em cada quatro, acima dos 65 anos. Uma sociedade que precisa de imigrantes para fazer o trabalho que os idosos não mais conseguem e grande parte dos jovens se recusa a realizar por outros motivos.
Quais?
Por questões sociais e educacionais. Uma delas: a fuga de jovens portugueses bem preparados para países mais ricos, em busca de ocupações e salários melhores do que os oferecidos pelo mercado português, é cada vez maior. Estudam em boas escolas e faculdades, falam inglês e outros idiomas e decidem viver em países que oferecem salários maiores e carreiras mais interessantes do que as ofertadas pelas empresas instaladas em solo português. Isso até poderia ser positivo para os brasileiros em termos de vagas, mas os sem qualificação não conseguem ocupar postos que seriam destinados aos que deixam Portugal. Ao contrário: na maior parte dos casos, resta fazer o trabalho que os jovens portugueses instruídos não realizam, independentemente de permanecerem ou não no país.
Quando você se estabeleceu em Portugal?
Em 2017, ano em que cheguei, o perfil da imigração brasileira era majoritariamente composto de pessoas e famílias de médio e alto padrões, integrantes dos dois primeiros grupos que citei. De lá para cá, na luta contra a falta da mão de obra, o governo instituiu uma série de medidas de incentivo à imigração, flexibilização de vistos de entrada e atração de investimentos estrangeiros.
Os salários não acompanharam, ficaram longe de acompanhar a alta do custo de vida nos últimos meses e anos. Mais da metade dos trabalhadores, incluindo portugueses de nascimento, recebe o salário mínimo de 760 euros. Com o desconto de 11% da Seguridade Social, o rendimento líquido cai para 676 euros. Em reais, seria um dinheiro até razoável para grande parte dos trabalhadores brasileiros, cerca de R$ 3.640, mas aqui poucas vezes dava para fazer alguma coisa — e neste momento menos ainda
PATRÍCIA LEMOS
Esse processo facilitou a entrada de dinheiro e imigrantes, mas também aumentou a concorrência por emprego em todos os níveis e o custo interno de vida, a ponto de assustar até mesmo os portugueses, como ocorreu nos anos 1990, na formação da União Europeia.
Exatamente. E os salários, desta vez, ficaram ainda mais distantes de acompanhar a escalada de preços de produtos e serviços. Vamos a alguns números e valores. Mais da metade dos trabalhadores, incluindo portugueses de nascimento, recebe o salário mínimo, 760 euros. Com o desconto de 11% da Seguridade Social, o rendimento líquido cai para 676 euros. Em reais, seria um dinheiro até razoável para grande parte dos trabalhadores brasileiros, cerca de R$ 3.640, mas aqui poucas vezes dava para fazer alguma coisa, e neste momento menos ainda.
Por que hoje ainda menos?
Nos últimos anos, com a política de incentivos à chegada de dinheiro de fora, Portugal, que não é um país rico, recebeu investimentos de russos e americanos em vários setores, entre eles no imobiliário. Chegaram pesado com dólares, compraram em grande quantidade imóveis históricos, antigos e outros bem localizados nas cidades e em pontos valorizados do país. Reformaram esses imóveis e os colocaram à venda ou para aluguel. Resultado: os preços no mercado imobiliário explodiram. Com os investimentos, as reformas e o aumento da procura, não poderia mesmo ocorrer outra coisa.
O aluguel de um quarto na casa de um morador de Lisboa ou do Porto custa hoje 600 euros [aproximadamente R$ 3.230] mensais. Com cerca de um salário mínimo em Lisboa, pagando um quarto desses, sobrarão 76 euros [R$ 410], talvez um pouquinho mais, por mês. Com isso é possível fazer pouquíssima coisa. A rigor, quase nada. Em razão da alta procura atual, o dono do quarto certamente pedirá entre quatro e cinco meses adiantados de caução. Ou seja: entre vários outros gastos, a pessoa precisará desembolsar, logo de início, algo entre 2.400 [R$ 12.920] e 3.000 euros [R$ 16.150]
PATRÍCIA LEMOS
Dê uma dimensão dessa explosão.
O aluguel de um quarto na casa de um morador de Lisboa ou dos melhores pontos do Porto, por exemplo, custa hoje 600 euros [aproximadamente R$ 3.230 ao câmbio de sexta-feira 12] mensais. Se alguém, brasileiro ou cidadão de qualquer nacionalidade, ganha um salário mínimo em Lisboa, sobrarão 76 euros [R$ 410] por mês. Com isso é possível fazer pouquíssima coisa — a rigor quase nada. E um detalhe: em razão da alta procura atual, o dono do quarto vai pedir de quatro a cinco meses de caução de adiantamento. Ou seja: entre vários outros gastos, a pessoa precisará desembolsar, de início, entre 2.400 [R$ 12.920] e 3.000 euros [R$ 16.150].
E isso apenas para começar a história…
Pois é. Além da caução e do aluguel, ela necessitará de pelo menos 300 euros [R$ 1.615] para as despesas com alimentação, transporte, telefonia e taxas ligadas ao quarto alugado, enfim, para a vida. Muitos brasileiros viram e disseram: “Ok, tenho o dinheiro do adiantamento. Vou dar”. Só que paga e não arruma emprego. Aí faltam dinheiro, emprego e recurso para voltar ao Brasil. Está fechada a equação. O aluguel de um apartamento de dois quartos em Lisboa custa 1.300 euros [R$ 7.000]. Digamos que um casal com essa renda somada decida morar longe da região central, para pagar 900 euros [R$ 4.850] por imóvel semelhante e viver com os 400 euros [R$ 2.150] restantes. Sinto muito, mas não deverá dar.
Não é simples como muitos pensam.
Definitivamente. Há um detalhe adicional: Lisboa, Porto e outros pontos interessantes de Portugal passaram a atrair, nos últimos anos, grande quantidade de europeus e cidadãos de outros países que trabalham à distância, com tecnologia, para grandes grupos mundiais. Essa turma, que pode viver em qualquer ponto do planeta com uma boa rede de internet, chega com dinheiro, bons salários, ajudando a inflacionar o mercado imobiliário, de produtos e serviços. Tudo isso contribuiu para a escalada dos preços nos últimos meses e anos. Por isso, muitas vezes, casais brasileiros desistem. Voltam ou tentam viver em outros países. Trabalham muito, todos os dias, inclusive nos fins de semana. Quase não se encontram, têm o lazer comprometido, e chegam à conclusão de que é melhor viver no Brasil, mesmo com os problemas, do que ter uma vida com esse desgaste e essa falta de qualidade em Portugal.
Existe perspectiva de melhora a curto prazo?
Dito tudo isso, é preciso reforçar, por outro lado, que esses alertas se referem a um determinado perfil de brasileiro candidato a imigrante. Portugal continua a ser um país com ótima qualidade de vida. Os brasileiros que vencem as dificuldades passam a desfrutar serviços públicos de qualidade, boas escolas para os filhos, segurança, deslocamentos civilizados e lazer, entre outras vantagens. Acredito que as altas de preço dos últimos anos serão amenizadas em algum momento e as coisas voltarão a um patamar menos hostil.
O que os brasileiros candidatos a viver em Portugal deverão fazer para reduzir os riscos de fracasso quando a escalada de preços for amenizada? Como é mesmo a história dos potinhos?
Para todas as situações financeiras e projetos de vida, um planejamento realista é fundamental. Todos, independentemente das condições financeiras e sociais, devem ter em mente o seguinte: mudar de país não é o mesmo do que trocar de rua, bairro, cidade ou mesmo estado dentro de sua própria nação. Costumo dizer que a pessoa precisa ter quatro potinhos. O primeiro, o da despedida do Brasil, que é cara: entregar casa, decidir destino das coisas que ficam, pagar taxas de fechamento, planos de fidelidade, documentos, essas coisas. O segundo é o da chegada, do setup em Portugal. Colocar a vida para rodar no início: acertar moradia, comprar prato, garfo, mesa, cadeira, essas coisas. Imigrante e familiares precisarão ir atrás de documentos e permissões aqui, porque, na prática, eles não existirão em Portugal antes disso — e isso custa dinheiro. O terceiro é o da reserva, o dinheiro para garantir a vida e emergências eventuais até rolar o rendimento do trabalho. E o quarto é aquele para o “me desculpe, não deu certo, vou pegar essa grana e ir embora”.
Novembro, dezembro, janeiro e fevereiro, meses calorentos no Brasil, são frios aqui. A quantidade de turistas estrangeiros e de viagens internas de portugueses cai drasticamente. Em um país turístico como Portugal, isso é decisivo por vários aspectos. O dinheiro em circulação na ponta do mercado — comércio, lazer e serviços — sofre redução brutal no inverno. Com isso, despencam também as oportunidades de emprego em todas as áreas, sobretudo nas relacionadas a lazer, turismo e prestação de serviços, justamente as que costumam oferecer mais chances à mão de obra não qualificada
PATRÍCIA LEMOS
Você diz que até as estações do ano e a sazonalidade devem influenciar na escolha do melhor momento para chegar. Como?
Sim, porque podem influenciar concretamente nos resultados e nas conquistas. Os meses de novembro, dezembro, janeiro e fevereiro, calorentos no Brasil, são frios aqui. Inverno europeu. Para o brasileiro não é moleza. A quantidade de turistas estrangeiros e de viagens internas de portugueses cai drasticamente. Em um país turístico como Portugal, isso pode ser decisivo em muitos casos, por vários aspectos. O dinheiro em circulação no mercado é brutalmente reduzido nos meses frios. Com isso, despencam também as oportunidades de emprego em todas as áreas, sobretudo na prestação de serviços, que costuma dar mais chance à mão de obra não qualificada. Não bastasse, o frio exige investimento pessoal em roupas mais caras. Tudo isso conta. É bem mais fácil conseguir trabalho de abril a setembro, quando as cidades estão lotadas de turistas. Quem vem para trabalhar sem vaga definida deve pensar bem neste ponto.
R7